Acerca disso, LIMA et
all (2016:302) cita,
“O desfile de negros
seminus, esquálidos e pestilentos
no centro político,
econômico, administrativo e religioso da cidade,
que tinha como epicentro o
Paço dos Vice-Reis,
por certo trazia
constrangimento e medo às elites,
receosas de serem
contaminadas com suas doenças.
Por conta disso, era preciso
remanejá-los para bem longe,
para um local de menor
exposição e visibilidade,
onde não constituíssem uma
ameaça
nem provocassem tanto
desconforto.”
Outro fator mencionado, como determinante, incide nos constantes
conflitos entre os traficantes, os atravessadores e os compradores
de escravos, com envolvimento até das autoridades locais e o próprio
rei de Portugal.
Tudo leva a crer que ambos fatores contribuíram para a
proposta e decisão de transferência do comércio de escravos para uma região
"fora dos limites da cidade". E, com isso, em 1779, o D. Luís
de Almeida Soares Alarcão, o Marquês do Lavradio (Vice-Rei do Brasil, na
época) transferiu o comércio dos escravos da parte nobre da cidade (Rua Direita) para a Região do Valongo.
A região do Valongo compreendia a faixa do litoral
carioca que se estendia da Prainha à Gamboa, indo da praia ao seu
interior. Seu destaque econômico e social passou a crescer em razão de
sua função e “relevância” no contexto histórico da cidade e do país, com a
comercialização de escravos e, posteriormente, com o desembarque dos cativos,
após as obras de infraestrutura no Cais do Valongo, visto que inicialmente só o ponto de comercialização havia sido transferido.
Com isso, o chamado “Complexo do Valongo” compreendia o mercado de escravos, composto por “lojas
de carnes” (armazéns para exposição e venda de escravos), um lazareto
(local de quarentena para os escravos doentes), a “casa de engorda”
(armazém onde os escravos, debilitados pela longa viagem, eram mantidos e
alimentados até chegarem a condições adequadas para venda) e um cemitério
(cemitério dos Pretos Novos), que já funcionava desde 1769.
Região do Valongo
Imagem capturada na Internet
Armazém ou loja de carne (comércio de escravos)
na rua do Valongo
Aquarela de Jean Baptiste Debret (1820-1830)
Comércio de escravos na Rua do Valongo
O desembarque dos escravos novos não foi feito,
inicialmente, no Cais do Valongo. Antes mesmo deste, outros ancoradouros
existentes na praia do Valongo tiveram essa função.
Na época, existiam diversos trapiches ao longo da praia
do Valongo, os quais eram utilizados para embarque e desembarque de pessoas e mercadorias.
De acordo com LIMA et all (op.cit.), a única referência sobre o
desembarque dos escravos africanos consta em um documento, datado
de 1811, com menção aos negociantes de escravos, no
qual é relatado que os ancoradouros do Poço e o da Boa
Viagem serviam como pontos de desembarques dos cativos.
Por sua vez, quanto às atividades do Cais do Valongo, o que se tem
registrado, segundo os referidos autores, é apenas uma declaração –
da mesma época – do Intendente Geral de Polícia da Corte e do Estado do
Brasil, o Desembargador e Ouvidor, Paulo Fernandes Viana, datado de 30
de maio de 1811, no qual se atesta as obras de sua edificação, com a
construção de rampas e o seu calçamento com pedras.
Segundo o
mesmo, essas obras de “infraestrutura portuária” nesse trecho da praia do
Valongo foi ordenada pela Alteza Real, o Príncipe Regente D. João.
Este, ao deixar a Intendência Geral
da Polícia, reiterou a
referida declaração, afirmando que:
“fiz o Cais do Valongo no
fim da rua deste nome
com rampas e escadas
para embarque,
que foi de suma utilidade por
não haver em certas estações
local mais cômodo para
embarques e desembarques,
e iluminei com lampiões o
mesmo cais.”
(LIMA op.cit.:306)
Notadamente, com o intenso comércio de escravos e após a
operacionalidade do cais, a região do Valongo passou a se destacar
economicamente, no Século XIX, já despontando como um dos locais
mais movimentados do Rio de Janeiro.
Firmando-se como grande centro de venda e de distribuição
de mão-de-obra escrava africana de todo o Brasil. Segundo PEREIRA
(2007), por volta de 1817, a região já contava com cerca de 34 grandes
estabelecimentos comerciais, tendo entre esses, casas de importação e
exportação.
O Cais do Valongo, por sua vez, tornou-se o principal
porto de entrada dos escravos novos no Brasil, superando em número de
importações a outros portos da costa brasileira, como de Salvador e Recife.
De acordo com o PEREIRA (op.cit.), o dinamismo do comércio na região impulsionou a sua expansão à direção norte da cidade.
“Logo que esses escravos chegam ao Rio de Janeiro,
são aquartelados em casas alugadas
para tal fim na Rua do Valongo, junto do mar.
Vêem-se ali crianças, desde os seis anos de idade,
e adultos de ambos os sexos, de todas as idades.
Eles jazem nús, expostos ao sol nos pátios, ou
fora,
em volta das casas, ou separados segundo os sexos,
distribuídos em diferentes salas.
(...) O comprador verifica o vigor físico e a
saúde,
ora apalpando o corpo todo, ora fazendo o negro
executar
rápido movimento especialmente a extensão do punho
cerrado.
Defeitos orgânicos ocultos, sobretudo a tão comum
disposição
para catarata, é o que mais se receia nessas
compras.
Feita a escolha, é determinado o preço da
compra...”
(J.B. von Spix e C.F.P. von Martius apud HONORATO, 2008:78)
Em 1831, o Cais do
Valongo foi desativado por pressão da Inglaterra,
que se mostrava contrária ao sistema escravista e, consequentemente, ao tráfico
negreiro (segundo os seus interesses comerciais, é claro!). No entanto,
mesmo com as pressões inglesas e o seu fechamento, o comércio marítimo de
escravos continuou na cidade, bem reduzido, sem dúvida, mas continuou, pois haviam vários trapiches (ancoradouros de
embarcações) espalhados em sua costa litorânea, assim como em outros pontos do
estado e do Brasil.
Segundo os historiadores, tal situação conflituosa entre a
proibição e o não cumprimento efetivo da determinação, deu origem à expressão,
empregada até hoje, “lei para inglês ver”.
Em função disso, muitos traficantes passaram a explorar
crianças como estratégia de manter a atividade rentável do tráfico (ilegal),
uma vez que estas se mostravam menos resistentes à escravidão.
Cais do Valongo (início do Século XX)
Imagem capturada na Internet
Em 1843, o Cais do Valongo (desativado) foi aterrado
e um novo foi construído em seu lugar, mais largo e esteticamente embelezado, para recepcionar a princesa
Teresa Cristina Maria de Bourbon (princesa das Duas Sicílias), ou
melhor, a Imperatriz do Brasil, uma
vez que ambos já haviam contraído matrimônio (casamento arranjado), por procuração, estando ela
em Nápoles e ele no Brasil, no dia 30 de maio do mesmo ano.
Os dois só vieram a se conhecer, pessoalmente, no dia da
chegada da Imperatriz à cidade do
Rio de Janeiro, em 3 de setembro de 1843,
quando a Fragata Constituição, que a
trouxe, ancorou no Cais do Valongo.
O projeto de reforma do cais foi realizado, na época,
pelo paisagista francês, August Grandjean de Montigny, que chegou à
cidade em 1816, integrando um grupo de artistas e técnicos franceses que
participavam da chamada Missão Artística Francesa, trazida a convite do Príncipe-Regente
D. João.
No âmbito dessas reformas, além do ancoradouro ser renomeado
de Cais da Imperatriz, o nome da rua Valongo também foi substituído,
passando a ser chamado de rua da Imperatriz (Lima, 2013).
Permanecendo com esse nome até 1890, quando foi novamente rebatizada com o nome atual, Rua Camerino, em
homenagem ao herói da guerra do Paraguai, Francisco Camerino de Azevedo.
No início do século XX, em 1911, em razão das
reformas urbanísticas implementadas pelo, então prefeito da cidade,
Pereira Passos, o Cais da Imperatriz também foi destruído e o
local aterrado. Não havendo a devida preocupação – na época – de
conservá-lo e nem expô-lo a céu aberto para visitação pública.
Um dos poucos monumentos
de época que ainda se encontra preservado no local, na praça do
Jornal do Comércio, e que tem referência à Imperatriz Teresa Cristina é o antigo “Chafariz
da Imperatriz”, construído em sua homenagem, em 1872.
Neste se observa uma placa - em sua coluna de granito - informando que naquele local
existiu o Cais da Imperatriz, assim
como também o Cais do Valongo.
Segundo fontes de pesquisa, essa coluna era composta de quatro bicas que jorravam água para um tanque retangular, situado em sua base. Hoje, no entanto, os mesmos não mais se apresentam no monumento.
Antigo Chafariz da Imperatriz
Imagem do meu acervo particular (julho de 2017)
Placa informativa na coluna do antigo Chafariz da
Imperatriz
Imagem do meu acervo particular (julho de 2017)