Dando continuidade a postagem anterior...
Como pudemos observar, a Região Portuária e o Centro do Rio de Janeiro apresentam inúmeros registros
de um passado sombrio e desumano marcados pela escravidão no
Brasil e, muitos deles, descobertos após as obras
de revitalização da Região Portuária do Rio (Projeto Porto Maravilha).
Outros,
no entanto, foram “encobertos” tanto pela reforma
urbanística municipal do então prefeito da cidade, Pereira Passos, quanto pela reforma a nível federal, sob a gestão do presidente Rodrigues Alves e conduzida,
principalmente, por Lauro Muller e Francisco Bicalho. Ambas reformas urbanas datadas
do início do Século XX (SILVA, 2019).
Sob este contexto, podemos visitar ainda, no sopé e nas imediações do Morro da Conceição, outros pontos turísticos que integram o Circuito Histórico e Arqueológico de raízes africanas, como o Largo de São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal (antiga Pedra da Prainha), o Cais do Valongo e o Jardim Suspenso.
Em 2017, eu tive a oportunidade de conhecê-los e, em 2019, junto com a minha filha, eu participei de um "Passeio" cultural à esta parte histórica do Centro do Rio de Janeiro, vinculado a um programa do Museu de Arte do Rio (MAR). A respectiva excursão foi guiada por Gracy Mary Moreira, bisneta da Tia Ciata, uma das Tias Baianas da chamada Pequena África (mais adiante falarei sobre isso).
As imagens
abaixo são desta época (2019)
e constam do meu acervo particular.
Todas as informações, aqui explicadas, se basearam
em fontes bibliográficas e relatos verbais proferidas durante à referida
excursão (2019).
LARGO DE SÃO FRANCISCO DA PRAINHA
O Largo tem esse nome, primeiro, em homenagem ao padroeiro da igreja, erguida próxima a este, em
1696,
isto é, a igreja de São Francisco. Segundo, em razão
da existência – até o fim do Século XIX - de uma pequena praia (Prainha)
localizada na região, entre a Praça XV e a Praça Mauá, a qual foi aterrada,
por ocasião da construção do porto do Rio de Janeiro, no início do Século XX.
Igreja de São Francisco da Prainha Imagem do meu acervo particular |
Inaugurada em 2016, no
centro do largo encontra-se disposta a estátua
de Mercedes Baptista, a primeira
bailarina negra da Companhia
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi ela que inseriu a dança afro-brasileira, como disciplina, na escola de teatro.
PEDRA DO SAL
Situada no sopé do Morro da Conceição (Saúde) e a 100 metros do Largo São Francisco da Prainha, esta era conhecida, antigamente, como Pedra da Prainha, em virtude da pequena praia que existia na região e que foi aterrada para a construção do porto do Rio de Janeiro, no início do Século XX. Depois, esta passou a ser chamada de Pedra do Sal devido ao descarregamento de sacas de sal das embarcações.
No porto do Rio de Janeiro, os desembarques de escravos - procedentes da África - eram intensos, assim como, os já libertos (ex-escravos) vindos da Bahia durante a segunda metade do século XIX.
O porto da cidade do Rio de Janeiro foi o que mais recebeu escravos africanos e ex-escravos. Esses últimos, seguindo os diversos fluxos migratórios internos (advindos – sobretudo - da Bahia) após o fim do tráfico negreiro, o que ocasionou a presença maciça de negros baianos na capital fluminense.
Com isso, passou a ser grande a população de negros, escravizados e livres no Centro da cidade. Só para se ter uma ideia dos efeitos desta desproporcionalidade demográfica em face a outros grupos étnicos, na época, SOUZA (2013:78) afirma:
“Naquela altura, o Rio
de Janeiro assistia àquilo que se denomina de formação de uma “cidade negra”: a
intensa ocupação do espaço público da cidade por escravos e negros forros. Em
1849, esta era maior cidade negra das costas atlânticas brasileiras e das
Américas. Os dados demográficos podem não ser regulares, mas conseguem trazer
uma ideia da dimensão numérica da população africana e afrodescendente no RJ no
período. ”
Já libertos, muitos ex-escravos, seus descendentes e outros migrantes negros baianos vieram morar no bairro Saúde, onde o preço das casas era mais baixo e por haver mais oportunidades de trabalho, no porto, como estivadores ou em outros ofícios.
A partir desse agrupamento e dos encontros com amigos e parentes, ao longo do tempo, a Pedra do Sal se tornou um ponto central da Pequena África, com suas manifestações culturais e sociais, onde os negros se reuniam para realizar rituais e cultos religiosos africanos e afro-brasileiro (candomblé), assim como batuques, danças, rodas de capoeira e de samba, com blocos e ranchos carnavalescos.
Daí o termo “Pequena África”, empregado por Heitor dos Prazeres, no início do Século XX, a qual expressa não só a população negra que predominava na cidade, como também a preservação e valorização de suas raízes culturais africanas por meio, sobretudo, de festividades e de práticas religiosas, mesmo sofrendo – muitas das vezes – repressões e perseguições policiais, na época.
"(...)
a polícia começou a prender os que dançavam o batuque,
e as autoridades governamentais, como um
todo,
passaram a proibir as danças e procissões
organizadas
pelas irmandades de escravos,
como as de Nossa Senhora do Rosário,
no campo de Santana"
(ABREU,1999, p. 198 apud MONTEIRO, 2017).
Outro aspecto de grande destaque no grupo era a culinária e, sobretudo, os quitutes típicos da Bahia, feitos pelas famosas “tias baianas”.
E mais, além da culinária
e dos terreiros de candomblé,
as tias baianas se destacaram no
campo da música, como "matriarcas e percussoras" do samba carioca, como a tia
Perciliana, tia Amélia, tia Carmem, tia
Ciata e outras.
E, entre estas, a mais famosa foi a Hilária
Batista de Almeida, mais conhecida como tia Ciata.
O filho mais novo da tia Perciliana, conhecido como João da Baiana (João Machado Guedes) compôs o famoso samba “Batuque na cozinha”. Já o Donga (Joaquim Maria dos Santos), filho da tia Ciata, compôs “Pelo telefone” - junto com Mauro de Almeida – que foi o primeiro samba gravado em uma gravadora, no dia 27 de novembro de 1916.
O historiador e professor Milton Teixeira (apud LUCENA, 2015), destaca esta época em que o gênero musical, samba, continuou a se fortalecer na Pedra do Sal sob as influências africanas e afro-brasileiras na cidade do Rio de Janeiro:
“No Século XX, muitos sambistas que vieram a
ser consagrados na música brasileira se mudaram para a Pedra do Sal. Donga,
João da Baiana, Pixinguinha e outros. A região virou um ponto de encontro de
artistas de samba. Tem toda uma ligação com a música brasileira, a música
negra, até porque nessa região se encontrava a chamada “Pequena África. (...)”.
Com isso, a Pedra do Sal se tornou o ponto central - da Pequena África - das manifestações culturais e sociais entre os negros, principalmente.
“A
África é um continente.
Já a
Pequena África, num certo sentido,
foi uma
espécie de mundo”
A área territorial da Pequena África abrangia os atuais bairros da Saúde, Estácio, Santo Cristo, Gamboa, Cidade Nova até a Praça Onze.
A guisa de curiosidade, a obrigatoriedade da existência da ala das baianas nas escolas de samba do Rio de Janeiro e de outras partes do país, até hoje, se deve à importância das referidas “tias baianas” no contexto do desenvolvimento do samba e do carnaval carioca.
Tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC),
em 20 de novembro de 1984, atualmente, a Pedra do Sal tem rodas de
samba semanais e, conta com uma comunidade remanescente de quilombos.
Pedra do Sal Imagens do meu acervo particular (Fotos de 2019) |
CAIS DO VALONGO
Trata-se de um dos mais importantes registros arqueológicos do período do tráfico e comercialização de escravos africanos no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro.
Construído no início do Século XIX (1811), este se tornou o principal porto de desembarque dos chamados pretos novos no Rio de Janeiro e de todo o país.
Em 2011, durante as obras de revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro (Projeto Porto Maravilha), o Cais do Valongo foi redescoberto e desenterrado após minucioso trabalho de escavação arqueológica, por uma equipe de pesquisadores, sob a responsabilidade da arqueóloga Tania Andrade Lima (Professora do Museu Nacional/UFRJ e Consultora da Archeos).
Em função de sua estrutura preservada e a importância histórica ímpar, o mesmo obteve o título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2017.
Em 1831, este foi desativado por pressão da Inglaterra. No entanto, mesmo com as pressões inglesas e o seu fechamento, o comércio marítimo de escravos continuou na cidade, embora reduzido, mas apoiado nos diversos trapiches (ancoradouros de embarcações) espalhados em sua costa litorânea, assim como em outros pontos do estado e do Brasil.
Em 1843, o Cais do Valongo (desativado) foi aterrado e um novo foi construído em seu lugar, mais largo e esteticamente embelezado, para recepcionar a princesa Teresa Cristina Maria de Bourbon (a Imperatriz do Brasil).
No início do século XX, em 1911, em razão das reformas urbanísticas implementadas pelo, então prefeito da cidade, Pereira Passos, o Cais da Imperatriz também foi destruído e o local aterrado. Não havendo a devida preocupação – na época – de conservá-lo e nem expô-lo a céu aberto para visitação pública.
Um dos poucos monumentos de época que ainda se encontra preservado no local, na praça do Jornal do Comércio, e que tem referência à Imperatriz Teresa Cristina é o antigo “Chafariz da Imperatriz”, construído em sua homenagem, em 1872.
JARDIM SUSPENSO DO VALONGO
A 200 metros dos Cais do Valongo encontramos o Jardim Suspenso do Valongo, obra paisagística que ocupou o local das antigas “casas de engorda” dos escravos, as quais eram barracões onde os escravos - recém-chegados - ficavam acomodados na intenção de ganhar peso e, assim, aumentar o seu preço no mercado.
Trata-se de uma construção paisagística,
encomendada pelo então prefeito Pereira Passos ao arquiteto Luis
Rey, no âmbito da política de urbanização e modernização de seu
governo. Datada de 1906, esta teve - como referência - os parques
franceses do Século XIX.
Situado a 7 metros acima do nível da rua, margeando a Rua Camerino
(antiga Rua do Valongo e, sequencialmente, Rua da Imperatriz), o
Jardim Suspenso do Valongo possui diversos canteiros distribuídos em dois pavimentos; uma Casa da Guarda,
que oferece exposição de objetos arqueológicos (utensílios como talheres,
jarros e outros de uso dos escravos) encontrados durante as escavações das obras
do Porto Maravilha; réplicas de estátuas de deuses romanos, como Ceres, Minerva,
Marte e Mercúrio, cujas peças originais decoravam, antes, o Cais da
Imperatriz (antigo Cais do Valongo).
Réplicas de estátuas de deuses romanos
Do alto, independente dos seus dois pavimentos, a vista para a Rua Camerino permite a visão das fachadas dos casarios antigos, ali preservados, muitos dos quais serviram como casa de engorda, de abrigo e de exposição de escravos no grande mercado existente.
Localizada também do outro lado da rua, vê-se a Praça dos Estivadores, a qual – no passado - era denominada de Largo do Depósito, inserido em uma área de comercialização de escravos e que consistia no centro das “casas de engorda” destes.
Muitos escravos africanos, ao desembarcarem no Porto do Rio, se encontravam doentes ou desnutridos ou feridos e, quando não, morriam antes de chegar em terras cariocas. Isso ocorria, sobretudo, devido à superlotação dos porões dos navios, a alimentação precária e, também, do tempo da longa viagem entre a África e à costa brasileira.
Sob estas condições, os negros africanos eram
encaminhados e conservados nas chamadas “casas de engorda” até estarem curados e em boas
condições físicas para serem expostos e comercializados no mercado de escravos.
Em 1779, o Marquês de Lavradio (Vice-Rei do Brasil) transferiu o mercado de escravos, que funcionava na Praça XV para o Cais do Valongo. Tal transferência promoveu o desenvolvimento de diversas atividades na região, com a construção de trapiches (para as embarcações) e a abertura de armazéns (de compra e venda de escravos) e de manufaturas. O mercado local foi extinto, oficialmente, em 1831.
Por estar situado a cerca de 200 metros dos Cais da Imperatriz (anteriormente, Cais do Valongo), o nome da praça passou a ser chamado de Largo da Imperatriz (Tereza Cristina, noiva de D. Pedro II), em 1843.
Contudo, com a Proclamação da República (25 de novembro de 1889), mais uma nova mudança o seu nome sofreu, passando este a se chamar Largo da Redenção.
O seu nome atual, Largo dos Estivadores, se deu em
1904,
após a fundação
do Sindicato dos Estivadores. Na ocasião, na localidade, a fim de
garantir a realização da Assembleia para a fundação do mesmo, João da Baiana e
os outros estivadores enfrentaram a polícia.
Encontramos ainda, no início da subida ao Jardim
do Valongo, a Casa da Tia Ciata, que
é um espaço
cultural, criado, com o objetivo de expor sobre a vida da mais famosa
“Tia Baiana” e matriarca do samba, funcionando também como escritório da Organização dos
Remanescentes da Tia Ciata (ORTC).
Fontes de Consulta
. BABER, Mariah e MACKAY, Rhona: A História Pouco Conhecida da Pequena África na Zona Portuária do Rio de Janeiro (2016) Traduzido por MACHADO, Halina – RioOnWatch
. LUCENA, Felipe: História da Pedra do Sal (2015) – Diário do Rio
. MACHADO, Sandra: Pequena África: reduzida no nome, gigante no legado (2014) – Multirio
. MONTEIRO, Carlos: A força do ‘lugar’ na construção, dinamização, manutenção e reafirmação das culturas da diáspora africana (2017) - Enfoques
. NETO, Francisco Antonio Nunes: A configuração de
um ícone de nacionalidade: as tias baianas no Rio de Janeiro (2019) – PROA: Revista de Antropologia e Arte
. PIMENTEL, Márcia: O pitoresco e histórico Morro da Conceição (2015) - MultiRio
. RICCO, Daniele: Morro da Conceição - A História Presente em suas Ladeiras (2021) - Viajando na história do Rio de Janeiro
. SILVA, Mayara Grazielle Consentino Ferreira da: Algumas considerações sobre a reforma urbana Pereira Passos (2019) – URBE/Scielo
. SOUZA, Mônica Lima e: Histórias entre Margens: Retornos de Libertos para a África partindo do Rio de Janeiro no Século XIX (2013) - Revista de História Comparada (RHC)/UFRJ
. VELLOSO, Mônica Pimenta: As Tias Baianas tomam
conta do Pedaço (1990) - Estudos Históricos (em PDF)
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